Novo Ensino Médio: como tirar os itinerários formativos do papel

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Mudança, que dá maior protagonismo aos(às) jovens e proporciona uma aprendizagem mais significativa, envolve repensar não apenas o currículo, mas as ações pedagógicas, a metodologia, os processos avaliativos e a formação dos(as) professores(as).

A Lei nº 13.415 de 2017 alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e estabeleceu uma nova estrutura para o Ensino Médio. Entre as mudanças estão uma organização curricular mais flexível, que contempla a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), e a oferta de diferentes possibilidades de escolhas aos estudantes, os chamados itinerários formativos. O prazo para as escolas se adaptarem a essa nova realidade termina agora, em 2022, o que traz um grande desafio para as instituições. 

Para falar sobre o “Novo Ensino Médio: como tirar os itinerários formativos do papel”, convidamos a Carolina Brant, gerente pedagógica da Geekie, e Ton Paulino, consultor educacional da Geekie.

O que é o Novo Ensino Médio

Antes de abordar como planejar e colocar em prática os itinerários formativos e as  possibilidades de transformar essas mudanças em experiências de aprendizagem significativas para os(as) estudantes, Carolina contextualizou a criação do Novo Ensino Médio e explicou o que são os itinerários formativos. 

“Historicamente, no Brasil, temos um índice de evasão muito alto nessa etapa do ensino. Isso acontece, entre outros fatores, porque há um descolamento do Ensino Médio em relação à realidade dos(as) alunos(as). O(a) estudante muitas vezes não sabe o que vai fazer, mas tem que tomar uma decisão [profissional] para o resto da vida.”

Para tentar mudar essa realidade, oferecer maior protagonismo aos(às) jovens e garantir a todos(as) os mesmos direitos de aprendizagem está sendo feita a reformulação. “Para aproximar a educação da vida dos(as) estudantes, gerar mais engajamento e evitar esses altos índices de evasão escolar”, completou a gerente pedagógica.

Em seguida, ela sintetizou as principais mudanças do Novo Ensino Médio: 

  1. ampliação da carga horária de 2.400 para 3.000 horas ao longo dos três anos;
  2. reelaboração dos currículos a partir da BNCC;
  3. existência de dois blocos articulados: formação geral básica (1.800 horas) e itinerários formativos (mínimo de 1.200 horas);
  4. escolha de caminhos de formação distintos pelos(as) estudantes.

Sobre a divisão da carga horária entre formação geral básica e itinerários formativos, ela ressaltou que diferentes arranjos podem ser feitos para refletir a realidade da escola e dos(as) alunos(as). Por exemplo, a mesma proporção de horas – 600 horas de formação geral e 400 horas de itinerários – durante os três anos. Ou aumentar de forma gradual a oferta dos itinerários ao longo dos três anos – 200 horas no 1º ano, 400 horas no 2º e  600 horas no 3º, por exemplo – para dar aos(às) estudantes a possibilidade de confirmarem e amadurecerem suas escolhas. Outra possibilidade ainda é oferecer os itinerários apenas no 2º e no 3º ano.

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Os itinerários formativos

Os itinerários formativos podem ser definidos como o conjunto de disciplinas, projetos, oficinas, núcleos de estudo, entre outras situações de aprendizagem, que os(as) estudantes poderão escolher no Ensino Médio. Eles aprofundam conhecimentos e habilidades em uma ou mais áreas do conhecimento (Ciências Humanas, Linguagens, Ciências da Natureza e Matemática) e  podem também ser constituídos pela formação técnica e profissional. “Não trata-se, portanto, de reforço, revisão, disciplinas livres ou aulas extras”, pontuou Carolina.

“O(a) aluno(a) passa a entender quais são as áreas relevantes para a sua jornada de aprendizagem e para os caminhos profissionais que quer seguir. E também para o seu projeto de vida – esse é o elemento mais importante dos itinerários, a construção do projeto de vida, não só de uma perspectiva meramente profissional”, destacou.

Ela ainda explicou que os itinerários formativos são compostos de 4 eixos estruturantes, cada um com um foco específico: 

  1. Investigação Científica: ampliar a capacidade dos(as) estudantes de investigar a realidade, compreendendo, valorizando e aplicando o conhecimento sistematizado por meio da realização de práticas e produções científicas;
  2. Mediação e Intervenção Sociocultural: ampliar a capacidade dos(as) alunos de utilizar conhecimentos para realizar projetos que contribuam com a sociedade e o meio ambiente;
  3. Processos Criativos: expandir a capacidade dos(as) estudantes de idealizar e realizar projetos criativos;
  4. Empreendedorismo: expandir a capacidade dos(as) alunos(as) de mobilizar conhecimentos para empreender projetos pessoais ou produtivos articulados ao seu projeto de vida.

Como tirar os itinerários formativos do papel e implementá-los na prática?

De acordo com a gerente pedagógica da Geekie, o primeiro passo é olhar para as características e os recursos que a escola possui. Por exemplo, se ela tem uma ou mais turma por série e as iniciativas que já realiza e podem ser aproveitadas – como um grupo de teatro, em que é possível alocar em Linguagens e trabalhar as habilidades do eixo estruturante Mediação e Intervenção Sociocultural.

Também é necessário considerar a divisão da carga horária, lembrar que é preciso trabalhar as habilidades gerais e por área de conhecimento dos eixos estruturantes e definir as experiências e trilhas que serão ofertadas. “É fundamental ainda olhar para a formação do corpo docente, pois há uma mudança de perspectiva do processo de ensino e aprendizagem, não mais centrado em conteúdo, mas em habilidades e competências”, afirmou. 

A escola pode então optar por criar seu próprio caminho, consultando os(s) estudantes para saber seus interesses, ou buscar algo pronto, que também poderá ser ajustado para a realidade da instituição.

“É importante fazer pesquisas com os(as) estudantes para verificar se as trilhas estão funcionando bem e entender se o aprendizado está acontecendo. É possível sempre evoluir, aprofundar ou criar uma nova trilha. Não é preciso reinventar a roda e começar do zero, pois pode-se aproveitar os conhecimentos que a escola já tem e pensar nas experiências de aprendizagem que fazem sentido oferecer”, disse Carolina. 

Possibilidades de trabalho com as habilidades

Exemplo 1: as possibilidades com Empreendedorismo

Para exemplificar como pode acontecer o trabalho na prática, a gerente pedagógica usou uma habilidade geral do eixo Empreendedorismo:

(EMIFCG11) Utilizar estratégias de planejamento, organização e empreendedorismo para estabelecer e adaptar metas, identificar caminhos, mobilizar apoios e recursos, para realizar projetos pessoais e produtivos com foco, persistência e efetividade.

Ela salientou que uma única habilidade permite várias possibilidades de leitura e trabalho. Por exemplo: utilizar estratégias de empreendedorismo para estabelecer e adaptar metas para realizar projetos pessoais. A partir dessa leitura, seria possível criar uma disciplina de empreendedorismo, construir uma empresa jovem na escola e fazer iniciativas com outras instituições. 

Considerando a mesma habilidade, mas sob outra perspectiva, saindo do empreendedorismo e passando para o planejamento, teríamos: utilizar estratégias de planejamento e organização para estabelecer e adaptar metas para realizar projetos pessoais e produtivos. Neste caso, poderia ser criada uma disciplina socioemocional para trabalhar planejamento, organização e metas pessoais, uma outra disciplina de estratégias e planejamento e um núcleo de estudos de planejamento e foco. 

Exemplo 2: habilidade de Ciências da Natureza, eixo Investigação Científica

Em outro exemplo, Carolina mostrou uma habilidade específica de Ciências da Natureza, do eixo Investigação científica: 

(EMIFCNT01) Investigar e analisar situações problema e variáveis que interferem na dinâmica de fenômenos da natureza e/ ou de processos tecnológicos, considerando dados e informações disponíveis em diferentes mídias, com ou sem o uso de dispositivos e aplicativos digitais.

A partir de “investigar situações problema que interferem na dinâmica de processos tecnológicos, considerando dados e informações disponíveis em diferentes mídias”, seria possível fazer um laboratório de tecnologia, um núcleo de estudos de evolução tecnológica  e projetos de soluções energéticas. 

“Lendo a mesma habilidade de outra maneira – analisar situações problema que interferem na dinâmica de fenômenos da natureza, considerando dados e informações disponíveis em diferentes mídias – poderíamos fazer um Laboratório de Ciências da Natureza, um núcleo de estudos de fenômenos naturais e uma disciplina de energia e sustentabilidade”, sugeriu.

Ela contou que, na plataforma Geekie One, há uma disciplina chamada Energia Sustentável, que trabalha essa habilidade. “Fazemos uma análise de situações problemas e de processos tecnológicos e focamos nos eixos de Investigação Científica e Mediação e Intervenção Sociocultural. No capítulo sobre os avanços da tecnologia e seus impactos, nós damos um trabalho mão na massa para os(as) estudantes, fazemos contextualização histórica e, a partir da investigação do setor e sua evolução, propomos a construção de uma linha do tempo sobre os avanços tecnológicos no setor energético.”

Os desafios para os(as) professores(as) vai além de saber como ensinar

Ton Paulino, consultor educacional da Geekie, que foi redator do componente de Química do currículo do Mato Grosso do Sul e coordenador estadual do programa de itinerários formativos do mesmo estado, comentou sobre os desafios da reestruturação. Segundo ele, a primeira dificuldade foi transpor um processo de ensino e aprendizagem baseado em conteúdos para um focado em competências e habilidades

“Uma coisa é ensinar o(a) aluno(a) a memorizar símbolos da tabela periódica, outra é desenvolver a capacidade de análise e identificação de elementos de uma estrutura. Isso exige um planejamento do(a) professor(a) de forma coletiva, para identificar onde essa habilidade conversa com os componentes curriculares de cada área”, frisou. “E também perceber os objetos de conhecimento que estão associados a essas habilidades, quais as possibilidades de projetos que ela permite e ainda escolher os objetos de conhecimento que serão aprofundados dentro dessa habilidade.”

Tudo isso, de acordo com ele, exige metodologias diferenciadas, como as metodologias ativas, que colocam o professor não como o detentor do conhecimento, mas como mediador do processo de aprendizagem. Nessa perspectiva, a formação dos(as) professores(as) é outro ponto essencial.

Pontos de atenção para a gestão

Carollina lembrou que a construção e a organização da grade curricular e a criação das trilhas envolvem aspectos que vão além da parte pedagógica, como o espaço da escola e a questão orçamentária. “Quando a escola tem uma só turma de cada ano, por exemplo, uma possibilidade é criar turmas multisseriadas, em que estudantes de diferentes anos se aprofundam numa mesma trilha.”

Um receio que as escolas podem ter é criar trilhas que não tenham muita adesão dos(as) alunos(as). “É por isso que precisamos da escuta ativa. Temos de entender a realidade, as necessidades e os desejos dos estudantes para oferecer trilhas conectadas a essas demandas”, ressaltou.

Quanto às famílias, essas mudanças podem fazê-las questionar se seus filhos e filhas estão de fato aprendendo. “Por isso, é fundamental divulgar o trabalho para que elas entendam o quanto o aprendizado pode ser rico e significativo, um aprendizado para a vida. Aí é abrir espaço para a participação. O mais bonito dos itinerários é a construção do conhecimento e a sua divulgação na comunidade escolar.”

Repensar não só o currículo, mas todo o processo

Outro ponto importante nesse contexto de reformulação, segundo Ton, é a escola ter clareza quanto ao seu currículo. “O currículo não é a lista de conteúdos, mas sim o conjunto de ações práticas e valores que temos dentro da escola enquanto instituição educacional. Se sabemos qual é o nosso currículo e objetivo, nós temos a percepção de quais escolhas vamos fazer, da metodologia que vamos usar às trilhas formativas que vamos oferecer.” 

O consultor salientou que o novo Ensino Médio traz como pano de fundo a formação integral do(a) estudante. Ele não é mais visto apenas do ponto de vista cognitivo, mas também do cultural, social e emocional. Assim, a escola precisa expandir sua prática curricular para formar estudantes para os desafios do século XXI, desenvolvendo capacidade de liderança, abertura ao novo e habilidades para lidar com o conjunto de estímulos que recebemos, entre outras habilidades.

Ele também destacou a relevância de acompanhar a aprendizagem dos(as) estudantes, que precisa transcender a questão da nota. “Se o(a) aluno(a) não aprende, não faz sentido. E se o(a) professor(a) não entender que os aspectos da aprendizagem vão além da memorização, não conseguimos compreender se ele(a) está aprendendo e sendo formado com o conjunto de competências e habilidades essenciais para seguir em frente e dar continuidade aos estudos. Ou seja, envolve repensar o currículo, as práticas pedagógicas, os processos avaliativos e de acompanhamento e a formação dos(as) educadores. É uma mudança de cultura, de mindset.”

Por fim, o convidado comentou sobre uma possível percepção dos(as) professores(as), que podem achar que terão uma diminuição das suas aulas devido à introdução dos itinerários formativos. “Na verdade, tivemos um aumento da carga horária dos(as) professores(as) e uma ampliação do modo deles(as) atuarem, saindo da aprendizagem apenas dos conteúdos e indo para outras possibilidades dentro da área do conhecimento, com novas metodologias e perspectivas para aprofundar o conhecimento”. Por exemplo, em Química, o conhecimento vai ser associado à Biologia e Física. O(a) professor(a) pode ser o da formação geral básica e ter também uma estrutura de itinerário formativo dentro da sua área de conhecimento.

“Não vejo como perda, mas como ganho e oportunidade de desenvolvimento. A abertura ao novo será uma habilidade muito necessária aos(às) professores(as) para realmente se desenvolverem e consolidarem a jornada dos itinerários formativos.”

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