“Valorizar e fruir as diversas manifestações artísticas e culturais, das locais às mundiais, e também participar de práticas diversificadas da produção artístico-cultural” é assim que a Base Nacional Comum Curricular específica a competência que ficou conhecida como “repertório cultural. Para levá-la à sala de aula, é importante entender que é a cultura e como ela está presente em nosso cotidiano.
Não é fácil saber se você está desenvolvendo o seu repertório cultural. A princípio estamos a todo momento ampliando-o, seja conversando com pessoas, vendo vídeos, viajando etc. Mas nem sempre entrar em contato com uma outra cultura significa que estamos tendo uma aproximação significativa, entendendo profundamente as nuances dela.
Isso não quer dizer necessariamente que não nos esforçamos para conhecer o desconhecido, mas sim que tendemos a ver o mundo sob certos filtros, os nossos. Esses filtros são importantes porque representam personalidade, experiência de vida e aprendizados pessoais. Entretanto, eles podem fazer com que não vejamos com clareza o outro e a importância de outras culturas.
Por exemplo, pelo nosso filtro do que entendemos ser uma família feliz, podemos olhar relações familiares diferentes, como em comunidades indígenas brasileiras, por exemplo, e constatar erroneamente que não sejam relações saudáveis, seja pelo formato, pela divisão das responsabilidades, pelas demonstrações de sentimentos etc. Assim, podem começar a surgir os estereótipos que muitas vezes nos distanciam de um entendimento real sobre a cultura dos outros. Surgem ideias prontas como a de frieza dos londrinos, a da felicidade dos baianos e a da disciplina dos japoneses.
Com o avanço da internet e da comunicação, vemos dois movimentos contrários. O primeiro é a possibilidade de entrar em contato com diferentes culturas, as quais talvez nunca conheceríamos de outra forma. Podemos sentar agora e conhecer um pouco mais sobre como o povo inuíte ensina as crianças a controlarem a raiva, podemos entender um pouco mais sobre como a criação de gado na ilha de Hokkaido faz com que a culinária da região se diferencie em relação à de outras regiões do país. Podemos ver o continente africano como uma mistura imensa de povos tão culturalmente diversos e atuantes em sua própria história, e não apenas como um ambiente repleto de pobreza.
O segundo movimento é de uma planificação da cultura. A sociedade de consumo e do espetáculo, em conjunto com as redes sociais, está criando uma cultura que ao mesmo tempo é de todos e não é de ninguém. Somos incentivados a interagir com o mundo e a interpretar os outros do mesmo modo.
Por isso, esse é um momento importante para trabalharmos nosso repertório cultural. Isso não significa apenas conhecer mais coisas, mas ter empatia e sensibilidade para conhecer a fundo o outro. Conhecer a cultura do mundo é conhecer o mundo.
Entendendo a competência Repertório Cultural
Chimamanda Ngozi Adichie, escritora nigeriana, palestrou certa vez a respeito do “perigo de uma história única”. Ela fala sobre ter crescido com referências culturais vindas da Europa, principalmente a partir da literatura, e de ter demorado a se dar conta de que pessoas como ela também poderiam existir na literatura e na cultura. É este o perigo de uma história única: ver pessoas e culturas diversas, por vezes pouco reconhecidas, a partir de estereótipos, o que contribui para sua invisibilização. A construção de um repertório cultural vasto e multidiverso, nesse sentido, é também um ato de cidadania.
A competência 3 da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é um marco importante no reconhecimento da valorização que as manifestações artísticas e culturais devem receber. No texto da competência, isso já está explícito. O texto também prevê fruição por parte de alunos e alunas, que se apropriam dessas manifestações e passam a sentir-se pertencentes a elas e seguros(as) para expressar suas próprias inclinações, criando e praticando a arte.
A BNCC, portanto, vê a arte como fundamental na formação humana não só porque ela é o meio pelo qual conseguimos mostrar nossa própria individualidade, mas também porque a partir dela vivemos identidade e pertencimento a nossa nação. Conhecer tais manifestações é essencial, ainda, para que consigamos ver o outro, da forma com que esse outro se expressa dentro de sua realidade. A arte é, então, o caminho para desconstruir a história única, ou seja, uma forma de resgatar povos, de enaltecer vivências, de observar a beleza de culturas e comportamentos humanos que fogem ao padrão do que é produzido para fins de consumo estrito.
As redes sociais e a alta velocidade com que influências são trocadas através da internet fazem com que seja muito mais fácil, hoje, desconstruir ideias preconcebidas. A popularização do pop coreano, ou k-pop, é evidência disso: os grupos musicais do gênero vêm lotando estádios em todo o mundo, inclusive no Brasil, ajudando a quebrar barreiras que impediam a popularização de produções que não fossem predominantemente norte-americanas ou eurocentradas.
A promoção do repertório cultural na escola
A cultura está em tudo. Está na maneira com que conversamos, na comida que comemos, no modo como deitamos para dormir e em como acordamos para mais um dia. Na escola, não é diferente. Todas as ações que realizamos no processo de aprendizagem de alunos e alunas trazem grandes influências culturais, que são ao mesmo tempo externas e internas a todos e todas.
Na construção de repertório cultural, a escola já tem um papel absolutamente fundamental. Isso se reflete no conteúdo das aulas, especialmente de Linguagens e Ciências Humanas, que fornecem bases de construção de conhecimento, respectivamente, na expressão oral e física e no reconhecimento da história e das manifestações culturais do nosso povo e de outros povos.
Assim, cabe à escola estimular essa mudança de mentalidade: a formação do repertório cultural deve ocorrer em todos os sentidos, e não apenas na transmissão direta de conteúdo. Seus recursos devem ser direcionados à formação integral do aluno e da aluna, para que adquiram maior empatia, pluralidade de visões e amplifiquem sua sensação de pertencimento em relação à construção de nossa história e de nossa cultura.
* Ricardo Kuraoka é formado em Comunicação Social – Jornalismo pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Autor do livro fotográfico “Furou o asfalto – Um ensaio sobre vegetação urbana”. Membro do coletivo “Ataque”, que discute a política no videogame. Editor da disciplina de Educação Digital e disciplinas eletivas do Ensino Médio do Geekie One.
* Ana Lourenço é jornalista formada pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e especializada em Educação e Tecnologia, atuando há mais de seis anos como repórter e editora de materiais jornalísticos e didáticos. Produziu e dirigiu o documentário “Rito do Mérito”, sobre os mitos e dificuldades do acesso ao ensino superior, além da série “Fora da Grade”, que retrata projetos inovadores e gratuitos de educação em São Paulo. Atua como editora de Educação Digital e disciplinas eletivas do Ensino Médio do Geekie One.