Neste artigo, Debora Garcia revela como o mundo da programação pode ajudar as crianças em diversos processos de aprendizagem, como a pensar em novas soluções para problemas, a desenvolver a função narrativa, a ampliar o leque de argumentações e a criar senso de trabalho colaborativo. Confira:
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Minha filha tem sete anos de idade. É serelepe, falante, muito ativa fisicamente, adora brincar de desenhar e recentemente descobriu uma nova paixão: a programação. Não, ela não é um mini gênio, nem pode ser considerada tecnicamente uma “nerd”, já que passa a maior parte do tempo fazendo traquinagens, brincando e se divertindo, quando não está na escola. Mas ainda assim, de alguma maneira, a experimentação com o mundo fascinante dos códigos a seduziu.
Como toda criança de classe média brasileira, ela tem acesso a computadores, tablets e celulares. Não é dona de nenhum desses equipamentos ainda, mas lida com todos eles com grande familiaridade. Aquilo que se poderia atribuir como uma forte característica da geração dos nativos digitais. Ela, como as crianças de sua geração, já nasceu imersa nesse mundo. Celulares são objetos absolutamente cotidianos e corriqueiros para pequenos humanos como a minha filha. Esses “gadgets” fazem parte do dia a dia, são extensão do próprio corpo. O mundo praticamente não existe sem sua onipresença. E talvez por isso, brincar de “codificar” não soe para ela como nenhuma tarefa enfadonha ou como uma obrigatoriedade de uma atividade de sala de aula. É sinônimo de diversão e de descoberta!
Foi ouvindo algum professor da área de tecnologia que me deparei com a seguinte frase, que soou pra mim mais como uma sentença: “ou aprendemos a programar ou seremos programados”. O mundo contemporâneo é todo ele baseado na linguagem digital, no processamento da informação, na produção incomensurável de conteúdo das mais variadas formas e contextos, com os mais variados significados e intencionalidades. Todos eles circulando diante de nossos olhos ao serem devidamente “codificados” e transformados em elementos digitais. Esse mundo todo não nasce ao acaso. Alguém o idealizou, o programou, o tornou possível.
Desde atividades de gerenciamento financeiro, como monitorar nossa conta corrente, até a atividade cívica mais importante imputada aos cidadãos, o voto, tudo hoje passa pelo domínio digital. Até mesmo a própria ideia de democracia está atrelada à livre circulação de informação em bits e bytes. Termos como automação, inteligência artificial, robótica e realidade virtual só são possíveis porque eles existem dentro de uma dimensão de codificação e programação em plataformas e universos digitais. Isso tudo já seria motivo suficiente para querermos aprender a programar e, mais que isso, exigir que esse conteúdo seja amplamente trabalhado nas escolas. Até porque programar é apoderar-se de uma linguagem. Assim como nos apropriamos, por exemplo, da Língua Portuguesa ou de idiomas estrangeiros.
A comparação com a aprendizagem de um idioma cai muito bem quando estamos pensando nas funções da programação. Um renomado professor do MIT, Mitch Resnick, criador do software Scratch (que permite que crianças a partir de 08 anos aprendam brincando a programar) é categórico em fazer essa analogia. Ele defende que o que hoje chamamos de geração de nativos digitais encobre, na verdade, uma perigosa questão. Sim, as crianças usam equipamentos como computadores e celulares. São aptos a navegar pelos aplicativos, sites e programas já pensados e idealizados por alguém, mas isso não quer dizer que elas entendam como essa engrenagem funciona.
Confira o TED de Mitch Resnick sobre como ensinar às crianças a escreverem códigos
À título de comparação: ao nascermos em uma determinada nação, naturalmente aprendemos a falar naquele idioma local. Mas isso não significa necessariamente que saibamos “escrever” nessa língua. Tampouco, que tenhamos fluência em usar sua estrutura de linguagem para nos expressarmos e aprendermos a partir desse ferramental cognitivo. Resnick defende que as crianças aprendam a programar, a ter acesso a uma nova linguagem para que possam, sobretudo, escrever seus próprios códigos, entender a natureza do funcionamento de aplicativos e plataformas e, sobretudo, melhor interagir com o mundo que as rodeia.
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Scratch e o universo da codificação para crianças
A partir de blocos muito parecidos com a linguagem LEGO e que podem ser manipulados e reorganizados em função do que se quer atribuir a eles, o Scratch é um software de autoaprendizagem de programação voltado para crianças. Idealizado pelo Media Lab do MIT, ensina o usuário a programar enquanto brinca com esses elementos. A ideia é que a aprendizagem aconteça de forma autogerida, permitindo que os usuários possam interagir entre si, criticar os projetos uns dos outros, aprender a partir de remixagens e combinações de elementos e compartilhar os resultados de suas criações.
O pressuposto é que o conhecimento sobre programação aconteça de forma intuitiva e significativa. Por exemplo, determinadas funções matemáticas, como o conceito de “variável”, estão na base de muitas das criações possíveis a partir do Scratch. Mas isso ocorre de forma orgânica, dentro de um cenário o qual empregar “variáveis” significa vê-las aplicadas em algum contexto, enquanto a criança cria, por exemplo, funções de contagem de pontos em um determinado jogo, a cada vez que um movimento específico acontece. É, portanto, mais do que tudo, pura relação de causa e efeito, aprendida na prática. O Scratch proporciona, entre outras aprendizagens, que os pequenos façam histórias animadas, jogos e outros programas interativos.
Inspirado na forma como os DJs fazem a mixagem de sons, o Scratch é considerado mais acessível que linguagens de programação textuais. Sua interface gráfica é bastante intuitiva, não tem pegadinhas ou pontos obscuros que intimidam o aprendiz. Desde projetos de ciências, animes, pesquisas de opinião pública, trigonometria, arte interativa, até jogos e pequenas narrativas, o Scratch é um grande canvas dando instrumentos para que a criatividade infantil flua de forma livre.
Ideias complexas podem ser subdivididas em fragmentos mais simples, facilitando a aprendizagem. E ao trabalhar a fluência em uma nova linguagem, como a programação, a criança pode também aprender conteúdos transversais tão importantes quanto as habilidades imediatas de matemática e de lógica. Esse aprendizado capacita a criança a entender como ela pode encontrar caminhos alternativos para um mesmo problema, a reconhecer hierarquia de informações, função narrativa, a ampliar a capacidade de argumentação sistêmica e, sobretudo, a entender que o trabalho colaborativo gera resultados imediatos e tangíveis.
Então, gostou desse conteúdo e se interessou por programar também? Além do Scratch, aqui vão algumas dicas de programas de autoaprendizagem em programação para crianças e também para adultos curiosos: Lightbot e Hopscotch. Vale a pena experimentá-los para começar a desbravar todo um novo universo de aprendizagens. A programação está para o mundo contemporâneo como a bússola está para a navegação durante a Era dos Descobrimentos!
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*DEBORA GARCIA É PEDAGOGA, MESTRE EM EDUCAÇÃO PELA UFF, FULBRIGHT SCHOLAR PELA GEORGIA STATE UNIVERSITY, GA, E ESPECIALISTA EM GESTÃO DO CONHECIMENTO PELA COPPE-UFRJ. É GERENTE DE CONTEÚDO DO CANAL FUTURA E UMA DAS AUTORAS DO LIVRO “DESTINO: EDUCAÇÃO – ESCOLAS INOVADORAS”, PUBLICADO PELA FUNDAÇÃO SANTILLANA/ED. MODERNA. EM 2017, EM CONJUNTO COM DANIELA KOPSCH E DANIELA BELMIRO, IDEALIZOU E CRIOU O BLOG “3DEVI”, UM ESPAÇO PARA CONTOS, ENSAIOS E REFLEXÕES DA MULHER CONTEMPORÂNEA.
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