Será que a escola precisa ser sempre divertida?

Colunas

Nosso colunista, o professor Leonardo Freitas traz a reflexão: a escola precisa ser sempre um local divertido? Aprender é algo intrinsecamente prazeroso ou doloroso? Confira as experiências dele e tire suas conclusões.

De meus anos nos bancos do Ensino Básico, recordo-me com mais frequência de duas professoras. A primeira é a professora Jael, da sétima série. Jael era tudo o que uma professora não deveria ser: ríspida, grossa, intolerante e mal educada. Dizia, em alto e bom som, que odiava estar ali. Certa vez, durante a tradução de Careless Wispers – cantada com a voz empolgante de George Michael  –  levei um golpe de apagador de minha tão irritadiça professora. Sujou toda a minha cabeça com aquele pó de giz branco e fedorento. O mais incrível é que a tradução enfadonha, questionável e indiferente me marcou mais que a pancada que levei. Segui minha vida sem grandes traumas.

A segunda foi a responsável por me despertar o gosto pela vocação: minha professora Leoneide Rodrigues, que me ensinava gramática no Ensino Médio. Dispunha apenas de giz, quadro e voz. Eu viajava nas análises que fazia, na maneira de explicar e no bom humor com que ministrava suas intermináveis (e inquestionáveis) análises frasais. Até hoje mantemos contato, embora a correria da vida impossibilite muitos encontros.

Desses dois relatos, pude perceber que pouca coisa mudou hoje (ainda que, talvez, seja um pouco mais raro uma professora bater com o apagador nos alunos). Se tem algo que questiono sempre é a necessidade vívida de alguns colegas e instituições de manter a escola como um ambiente pálido, rígido e impecável. Isso é tão cansativo que o melhor dos melhores não consegue manter o controle e daí vem algo que incomoda todo mundo: a indisciplina! Por isso, lá vou eu novamente compartilhar com vocês algumas experiências que tive em relação à diversão no aprendizado.

A Mostra Cultural do Capitão América


Mostra Marvel Cultural (foto: acervo/Leonardo Freitas

Anualmente, nossa escola organiza um evento que nos toma muito tempo, material, preparação e fios de cabelos: a Mostra Cultural. Funciona mais ou menos como uma feira de ciências, mas com algumas particularidades e exigências a mais.

É um período em que paramos tudo o que estivermos fazendo para nos dedicar aos trabalhos de orientação dos alunos. E, particularmente, eu adoro! É uma bela chance de ficar entre os meus alunos, trabalhando, criando, interagindo. Ali, fico sabendo quais são suas dúvidas, queixas, aspirações, sugestões, novidades; enfim, podemos nos relacionar como iguais. 

Em 2014, quando realizamos o sorteio de temas para a Mostra, meu grupo foi recebeu os Estados Unidos da América. Embora a pauta possibilitasse grandes trabalhos, queria fugir do trivial. E aí surgiu a grande ideia: se a Mostra é cultural, não vamos focar na economia, nas forças militares ou na política – em consenso com meus pupilos, decidimos criar um stand da Marvel Comics. Afinal de contas, quer algo mais norte-americano que super-heróis?

Assim foi! Criamos murais, almofadas, quadrinhos, vídeos, bonecos; descobri muitos alunos com talentos artísticos no processo. Mas parecia que algo faltava… Foi quando um aluno lançou a pérola: “Professor, podemos vir fantasiados”? Abracei a sugestão e, dois dias depois, lá estava eu num fantástico uniforme do Capitão América, com direito a um escudo de flacidez duvidosa. Porém, houve um imprevisto: apenas eu fui fantasiado, meus alunos não compraram a ideia.

Ao invés de me retrair, tomei a frente do stand, chamando pais e tirando centenas de fotos com os visitantes. Não satisfeito, resolvi passear no bloco do Ensino Infantil. Ali, sim, fui tratado como uma verdadeira celebridade! Alunos, pais, mães, pequeninos visitantes de olhos ávidos – todos tirando fotos comigo. Por fim, voltei para meus alunos com a sensação de dever cumprido, além de muito satisfeito pelos trabalhos. Toda a experiência rendeu temas de redação, frases para análise e material de consulta que pudemos aproveitar durante o restante do ano letivo.

Conteúdos sérios, contextos engraçados e aulas interativas

Por muito tempo, eu fui exatamente o oposto do professor que sou hoje, inclusive com o hábito horroroso de guardar um calhamaço de folhas e documentos em pastas, para depois tirar cópias e distribuir aos alunos. Com o advento tecnológico, comprei um pendrive de 1 GB e comecei a colecionar apostilas, exercícios, fichas; enfim, qualquer coisa que remetesse ao estudo dos meus alunos, sem refletir sobre o que aquele material significaria para eles.

Até que, durante uma semana pedagógica, passei por uma situação que mudaria muito minha forma de ver as coisas. Estávamos em uma palestra de um PhD, um estudioso da mais alto escalão pedagógico. No meio do evento, percebi que quase todo mundo estava mexendo no celular, sem dar a mínima importância para o que o mestre falava. Aquilo me chocou muito! De que adiantava tanto conhecimento se não havia interação? Me senti como um aluno que estivesse, na marra, preso à sua cadeira na pior aula do universo.

Fiquei com isso na cabeça e simplesmente formatei meus pendrives. Joguei tudo fora. Comecei do zero, com um formato muito simples em mente: eu aliaria o conteúdo a contextos engraçados. Deu muito, mas muito certo mesmo! Busquei contextos novos, simplificação de conceitos, muitos exercícios. Juntei tudo em frases cômicas, mas tomando cuidado com qualquer excesso que porventura cometeria. Assim, surgiu uma coleção de 156 aulas, 2.356 slides e muitas horas de um aprendizado leve, verdadeiro e divertido.

A realidade do aluno faz a aprendizagem divertida


Uma pequena amostra dos meus slides cômicos para ensinar gramática (foto: acervo/Leonardo Freitas)

Afinal de contas, como prender a atenção de 35 adolescentes, às 7h30min da manhã duma segunda-feira, explicando “oração-subordinada-substantiva-subjetiva-reduzida-do-infinitivo”? É preciso quebrar essas barreiras que, às vezes, prendem um educador e suas turmas a um ambiente cansativo, torturante e, por que não admitir, chato mesmo. O ato de aprender algo não pode ser uma dor, uma lamúria. Se, quando éramos crianças, tínhamos prazer em aprender, não era por mantermos o nariz grudado em um livro didático, mas sim, pela possibilidade de explorar, tocar, sorrir, vivenciar coisas novas.

É preciso pular de cabeça no universo de nossos alunos, aceitar sugestões, interagir com eles, entender como pensam, do que gostam, o que ouvem e curtem. Foi assim que, em 2016, num belo dia eu os ouvi em coro cantando… “Malandramente / a menina inocente / se envolveu com a gente / só pra poder curtir…” – se esses versos causam arrepios em você ou se nunca ouviu falar da música, talvez seja hora de rever seus conceitos. Além dela, poderia listar uma centena de outras músicas e artistas admirados pelos jovens que, hoje, estão na minha sala de aula. Gostando ou não, é isso que eles ouvem, gostam e assistem. E é isso que vão continuar a fazer. E então? É mais fácil bater de frente ou entrar na onda?

Eu entrei. E, confesso… Adorei o resultado! Incorporei em minhas aulas as letras – em análises e conceituações de conteúdo gramatical – e as próprias músicas, quando uso o Narrador de Exercícios (leia mais sobre ele na coluna Como eu uso storytelling em sala de aula). Ora, música combina com tudo! Uma rápida entrevista ou bate-papo e você descobre nomes como Mc Chinelinho, Capa da Gaita, Melô do Faraó, Mc Biriri, além de uma montanha de sertanejos e funkeiros YouTube afora. Digo com propriedade de quem usa: nem todos são horríveis. Antes de lançar a primeira pedra, lembre-se de que Mamonas Assassinas foi um sucesso estrondoso em nossa época, ainda que estivesse longe de ser algo “pedagógico”. O tempo muda, os hábitos também.

E cá entre nós: conquistar seus alunos, tenham eles a idade que for, é mais necessário do que muito conteúdo que, às vezes, cobrimos atropeladamente. Uma relação bacana vale mais que um tópico de utilidade duvidosa do livro didático. O fato é que entender seu aluno e aceitá-lo como um ser que pensa, sente, tem gostos e desgostos – e, acima de tudo, querer participar disso – o levará a se tornar alguém querido por eles.

Jamais encare a vontade de ser “divertido” como algo ridículo, fraco, pejorativo. Se nenhum de nós vai ao cinema, à balada, a um restaurante esperando encontrar rancor, dureza e incompreensão, por que motivo na escola eles haveriam de ser encontrados? No mais, colha os frutos do que plantar. E acredite em quem passa muito por isso: não há uma turma que não possa ser conquistada, entendida. Seja parte de uma escola alegre. Dê uma aula divertida, sem medo de críticas. Pode ter certeza de que, se conseguir, os dedos que hoje apontam dúvidas para você farão parte das mãos que amanhã baterão palmas.

* Leonardo Freitas é graduado em Letras, com especialização em Literatura Brasileira. Leciona há 16 anos e desde pequeno queria ser professor. Já passou por todos os níveis, desde o Ensino Fundamental II ao Superior. Atualmente, trabalha com onze turmas de 8º e 9º ano e com turmas dos cursos superiores de Pedagogia e Enfermagem em instituições particulares de Brasília.

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