O que se aprende nas comunidades de aprendizagem

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Comunidades de aprendizagem

Uma comunidade de aprendizagem pode ajudar a preparar cidadãos com as competências necessárias para o século XXI? Leia mais sobre neste artigo da nossa nova colunista Débora Garcia​!

Você já se deu conta de quantas comunidades faz parte de alguma forma? Não pense só nos grupos que talvez esteja envolvido(a) ou seja seguidor(a) no Facebook. Nem somente nos que são criados por sua família ou pelo trabalho no WhatsApp, por exemplo. Me refiro também ao que acontece na sua vida  tangível, offline, como a participação em grupos religiosos, em agremiações políticas, em times esportivos, na vizinhança de um bairro ou condomínio, nos grupos de estudo de idioma, em bandas musicais, comunidades de leitura, em grupos de meditação, de discussão filosófica, de reivindicação por direitos, de mochileiros, de culinaristas, de cultivadores de hortas… A lista poderia continuar, mas o interessante é perceber o que acontece de especial nesses agrupamentos humanos que têm como característica a partilha de conhecimentos ou de elementos em comum como costumes, localização geográfica, valores ou visão de mundo.
Pela nossa própria natureza humana, que se nutre no contato com o outro, na interação e na construção de entendimentos e por vezes embates, estamos profundamente imersos na experiência social que é marcada pelas trocas, pela noção de pertencimento, pela possibilidade de aprendizagem, pelo crescimento pessoal e pelo reforço das nossas identidades.

Alteridade: quando o “eu” só pode existir em relação ao “outro”

Pois então! Existe um conceito muito interessante que é o da alteridade e que pode nos ajudar a entender a razão de termos uma atração irreversível por estarmos juntos, por partilharmos nossas vivências e saberes. A alteridade parte do princípio de que o homem em sua vertente social tem uma relação de interação e dependência com o outro. E a gente percebe isso olhando com cuidado para nossas próprias práticas cotidianas.
Eu, por exemplo, participo de uma porção de comunidades e aprendo muito com elas. Desde um grupo vocal acapella, um clube de leitura mensal, um grupo no Facebook que relata sonhos diariamente, passando por uns dois grupos de pais e mães de alunos que se falam pelo celular de forma constante, uma horta comunitária no meu prédio e até mesmo um grupo de amigos que tenta marcar um churrasco há meses pelo WhatsApp, sem sucesso, já que ninguém tem agenda.
Posso mapear um conjunto de aprendizagens e até ensinamentos que partilho com essas pessoas das comunidades. No grupo vocal, lemos arranjos, timbramos nossas vozes, trabalhamos a pronúncia e articulação em diferentes idiomas (cantamos em Português, Inglês e Francês!); no grupo de leitura, já fui apresentada a inúmeros autores nacionais e internacionais tendo acesso a histórias e costumes muito diferentes dos meus, ampliando meus horizontes. Com os outros pais da escola da minha filha, por exemplo, descubro atividades e lugares interessantes na cidade para programas em família, conheço mais a respeito das políticas pedagógicas da escola dos nossos pequenos, etc. E prosseguimos assim por diante, construindo uma enorme teia de trocas e saberes compartilhados e vivenciados a partir da participação nessas comunidades.

Preparando cidadãos para o século XXI a partir de comunidades

Partindo desse mesmo pressuposto, o de aprendizagem pelas trocas, uma escola muito singular e inspiradora com sede em Cotia, SP, tem muito a nos ensinar. É o Projeto Âncora, uma associação civil de desenvolvimento social criada em 1995 e voltada para crianças e adolescentes de baixa renda da região. Já em 2012, o que era um projeto educativo que funcionava no contraturno das escolas da região virou uma Escola de Ensino Fundamental com inspiração na Escola da Ponte, de Portugal. Uma das marcas do projeto é a gestão democrática de todos os seus processos, sejam eles de ordem pedagógica ou política. As ideias de coletivo e de grupos de aprendizagem são centrais para o projeto pedagógico do Âncora.
E essa forma de gestão construída pelo diálogo e pelo compartilhamento de saberes é aplicada por eles desde a escolha do percurso de aprendizagem que será adotado por cada educando, de acordo com suas características, interesses e habilidades, juntamente com seu tutor imediato, passando pela gestão do espaço, pela escolha dos temas geradores que servirão de inspiração para as turmas trabalharem conceitos de Matemática, domínio da Língua Portuguesa, conhecimento do espaço geográfico, entendimento dos fenômenos físicos e químicos que nos envolvem, etc. Mais do que um termo da moda, para o Projeto Âncora a gestão democrática é a materialização de uma forma de entender o mundo. É o princípio da alteridade que eu falava há pouco ganhando fôlego e virando algo concreto no dia a dia e nas relações estabelecidas por esse espaço pedagógico.
Além dessa inovação vinculada às relações coletivas que acontecem no espaço escolar, a escola de Cotia também reorganiza as estruturas educativas tradicionais. Na série documental Destino Educação: Escolas Inovadoras produzido pelo Canal Futura em 2016, a instituição é foco de um dos episódios e surpreende o telespectador quando mostra um das crianças aprendendo Matemática a partir de um projeto de interesse pessoal que é entender o que acontece com o lixo que é descartado no bairro e coletado pelo sistema de limpeza pública. A partir dessa indagação, um garoto de seus 10 anos de idade monta com sua tutora um itinerário de aprendizagem que passa pela pesquisa concreta de caracterização do lixo produzido pela comunidade, tratamento e distribuição de água, formas de descarte, processos de coleta e tratamento dos dejetos, impactos ambientais, custos, etc. Muitos conhecimentos correlatos são trabalhados nesse processo: domínio da leitura e da escrita; capacidade de busca e apuração de dados, pensamento crítico, análise, interesse intelectual e curiosidade. Não por acaso, o que acabei de mencionar tem relação direta com as competências necessárias para o século XXI. E todo esse conhecimento sobre sustentabilidade é colocado em prática quando um grupo de crianças da escola, munidas de sua curiosidade e de suas pesquisas prévias, faz uma visita a uma casa do bairro organizando com a moradora uma horta. Isso tudo dentro do guarda-chuva de aprendizagens envolvidas com o tema da produção, descarte, reciclagem do lixo e sustentabilidade.  

Inovação não tem relação somente com o uso de novas tecnologias em sala de aula ou com artefatos do mundo digital.

Cada vez que olhamos a nossa realidade de uma forma inusitada, encontrando novas respostas e jeitos de aprender que consigam dar conta de velhas questões, estamos inovando, descobrindo, testando e aplicando conhecimentos. E, como consequência, direta, impactando positivamente o nosso entorno. Esse é um dos mais belos compromissos de uma educação de qualidade. Aquela que não se satisfaz somente em informar, mas em transformar o mundo que nos cerca.
* Débora Garcia é Pedagoga, Mestre em Educação pela UFF, Fulbright Scholar pela Georgia State University, GA e Especialista em Gestão do Conhecimento pela Coppe-UFRJ. É gerente de Conteúdo do Canal Futura e uma das autoras do livro “Destino: Educação – Escolas Inovadoras”, publicado pela Fundação Santillana/Ed. Moderna. Em  2017, em conjunto com Daniela Kopsch e  Daniela Belmiro,  idealizou e criou o blog “3Devi”, um espaço para contos, ensaios e reflexões da mulher contemporânea.  Acesse o blog em https://medium.com/3devi e entre em contato: deborag@futura.org.br
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