Neurociência e emoções: uma aprendizagem para além do cognitivo

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4o encontro do Circuito Geekie, em 6 de maio, abordou a importância de compreender o papel das emoções e das diferenças individuais para planejar aulas mais envolventes, conectar os(as) estudantes e avançar na personalização do ensino

Como a neurociência pode nos ajudar a repensar o processo de educação, incluir todos(as) os(as) estudantes e prepará-los(as) para os desafios de um futuro que não temos como prever? Essa foi uma das questões iniciais lançadas pela docente e pesquisadora Carla Tieppo na palestra “Neurociência e inteligências múltiplas para não deixar nenhum(a) estudante para trás”, o quarto de sete encontros online do Circuito Geekie, realizado em 6 de maio.

Doutora em Neurofarmacologia e pioneira na aplicação da ciência do cérebro no desenvolvimento humano e organizacional, Carla começou a apresentação falando da necessidade de compreender o processo de desenvolvimento cerebral para além da visão do conteúdo e do conhecimento curricular, o que inclui a aprendizagem socioemocional e o desenvolvimento de outras competências e habilidades. 

“A padronização de um modelo de comportamento para todos(as) é um equívoco. A possibilidade de considerar que somos muito múltiplos(as) e diversos(as) é uma vantagem, pois temos na variedade e na diversidade humana a nossa grande potência”, destacou. 

Segundo ela, as empresas já estão percebendo isso, e a educação também precisa ter essa compreensão e considerar as competências e conhecimentos que serão imprescindíveis para o profissional do futuro. 

“Mas como desenvolver as competências socioemocionais efetivamente? Muitas escolas usam a mesma perspectiva do processo do conhecimento formal, até pela própria formação que os(as) professores(as) tiveram até hoje. É quase uma revolução na educação.”

Para ela, no entanto, mais importante do que discutir o que o futuro pede, é pensar que tipo de pessoas nós vamos desenvolver para construir esse futuro: 

“Se queremos um futuro melhor, nós também precisamos fazer isso por meio do processo de educação. E esse processo não pode ficar única e exclusivamente focado naquilo que é cognitivo, naquilo que é conhecimento. Isso já é consenso, todos os fóruns de educação estão batendo nessa tecla da edificação do ser humano, e a neurociência mostra isso também.”

Contribuições da neurociência: as características humanas e os estímulos para seu desenvolvimento

Carla explicou que o estudo da evolução humana a partir da perspectiva neurocientífica mostra que o ser humano se torna humano durante o seu processo de desenvolvimento e não ao nascer. 

“Apesar de ao nascimento já termos a genética e as características humanas, ainda não temos uma mente e a cognição humanas, que só serão desenvolvidas mediante os estímulos adequados.”

Esses estímulos são fundamentais para que os neurônios façam a comunicação entre as diferentes partes do cérebro, integrando dados e informações e constituindo redes neuronais. 

“Todo o conhecimento é provocado por essas atividades neuronais e por essas redes que são formadas. Anteriormente, acreditava-se que os cérebros de todas as pessoas eram iguais. Mas, na virada do século XX para o XXI, começou-se a perceber que os circuitos neuronais são muito individuais.”

A pesquisadora disse que essa constatação é muito importante, porque cada área cerebral tem um certo papel, e a integração entre essas áreas é o que permite que uma pessoa tenha melhor desenvolvimento em uma determinada área.

“Quando Howard Gardner enuncia a teoria das inteligências múltiplas, ele estava falando sobre como o cérebro se conecta durante todo o desenvolvimento, desde a gestação até o processo de finalização, entre 22 e 23 anos de idade. Essas conectividades que vão se estruturando são próprias das experiências e das oportunidades que as pessoas vão recebendo.”

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Emoção como ferramenta de aprendizagem

A especialista apontou que uma das áreas mais bem desenvolvidas das conexões cerebrais é justamente aquela que liga as partes de trás e da frente do cérebro. “Precisamos dessa integração do que eu conheço sensorialmente projetando para o meu comportamento. Todas as funções cerebrais vão precisar passar por esse desenvolvimento.”

Ela ressaltou ainda que, quando se olha para o interior do cérebro, é possível ver que a área que corresponde ao sistema emocional está ligada a outras. 

O sistema emocional é quase estrutural para o desenvolvimento do todo. Ele está o tempo inteiro qualificando e fortalecendo as conexões entre as outras áreas. E é isso que precisamos fazer – edificar no indivíduo conhecimentos e conexões que são estruturais para que ele possa avançar em outros conhecimentos.”

De acordo com a pesquisadora, quando alguém fala que é “ruim em matemática” é porque, provavelmente, não aprendeu os conteúdos da melhor maneira. “Tem muitas pessoas que, devido à forma como foram apresentadas à matéria, não conseguiram se conectar à mentalidade que precisam ter para pensar matematicamente.” 

Ela reforça que isso não tem nada a ver com a genética da pessoa, mas como os primeiros circuitos foram edificados e, o mais importante, como a emoção se conectou a tudo isso.

“Quando a criança tem facilidade em determinado aprendizado, ela vai se conectar com aquilo com mais força. E à medida que aprende, ela vai se envolvendo e gostando de fazer aquilo. Ao mesmo tempo, ela tende a não gostar do que tem dificuldade e, assim, vai fazendo suas escolhas.”

Mas dizer que uma pessoa não é boa em algo é contraproducente: “Às vezes, ela se encanta com determinada coisa, por exemplo, um instrumento musical, e consegue se desenvolver. Esse processo de desenvolvimento — assim como inteligência, talento e vocação — a gente adquire ao longo da vida. Também é resultado das coisas com as quais nós vamos nos conectando”, afirmou.

Encantamento e personalização da educação

Outro ponto destacado pela especialista é que as emoções também funcionam como um marcador de aprendizagem. “As emoções são verdadeiros marcadores somáticos, ou seja, o corpo nos dizendo porque aquilo é importante. É como um sistema de memória”.

Assim, ao considerar a perspectiva da neurociência e do funcionamento cerebral, os(as) professores(as) podem usar jornadas emocionais para encantar e envolver os(as) alunos(as) e fazer com que eles(as) se conectem a determinados conteúdos. E, ao perceber as dificuldades que vão surgindo, eles(elas) têm a possibilidade de trabalhar de forma um pouco mais individualizada, o que hoje é algo possível devido à tecnologia.

Esse processo de individualização diz respeito a entender qual conexão não foi feita e qual estágio o(a) aluno(a) não conseguiu elaborar para poder avançar. “É muito importante que a gente possa pegar as pessoas onde elas pararam. Pois é comum no processo de educação atropelar dificuldades, e é aí que se perde a chance de desenvolver os(as) alunos(as)”, alertou.

De acordo com Carla, é importante notar que todos os indivíduos podem desenvolver todas as inteligências e talentos múltiplos, uns com mais facilidade do que outros. “Quem restringe ou diminui essa possibilidade é o próprio processo de desenvolvimento da pessoa, que ocorre muitas vezes patrocinado por pais e professores(as) que não reconhecem a amplitude da capacidade humana.”

Família e corresponsabilidade

E o que cabe às famílias nesse processo? Como elas podem de fato colaborar com a aprendizagem de seus(suas) filhos(as) e como os(a) educadores(as) podem estimular essa corresponsabilidade? 

Para a especialista, é preciso trazer os pais, mães e responsáveis para perto, mas é necessário que eles(as) compreendam qual é o seu papel – e os(as) educadores(as) precisam ensinar isso a eles. 

“Muitos acham que é apenas fazer a lição de casa junto com o(a) filho(a) e corrigir o que ele(a) errou. Mas esse não é o melhor caminho, pois é por meio do erro que o(a) professor(a) vai conseguir ter um bom diagnóstico do que está acontecendo.”

Segundo ela, o processo que o pai ou a mãe precisam encadear é mostrar o quanto é importante que a criança se dedique àquela tarefa. Mas não a partir de um comportamento de ordenamento, comando e controle, mas valorizando o momento em que ela está estudando.

“Quando ela vai fazer a lição de casa, o pai ou a mãe pode pegar um livro e ficar ao seu lado, mostrando que também gostam desse tempo para se conectar com os seus aprendizados e aprender coisas novas. É possível ainda compartilhar comentários do livro e, com isso, a criança também vai aprender a compartilhar o que ela está aprendendo. Aí é a hora que o pai e a mãe podem estimular e interagir.”

Complemente seu conhecimento: Como as famílias estão acompanhando os estudos de seus filhos e suas filhas

Desmistificando o caráter utilitarista da educação

Outro ponto que os pais precisam desmistificar é o caráter utilitarista da educação:

“Quase nada do que ensinamos na escola vai ser usado no futuro. Mas o cérebro que a gente desenvolveu ensinando essas coisas vai ser utilizado. Por exemplo, uma equação de segundo grau. Quando ela será usada? Na verdade, ela já o foi, porque quando o(a) jovem aprendeu isso, o cérebro já mudou a conformação e o entendimento sobre o mundo”, destacou a pesquisadora.

Assim como os(as) alunos(as) necessitam de encanto, incômodo e provocação para aprender, os(as) docentes precisam trazer esses estímulos para que eles(as) próprios também possam aprender sempre. “Os(as) professores(as) nunca estão prontos(as) e nunca podem se acomodar. A sociedade está em constante mudança, e a sua evolução depende deles(as)”. 

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