Entrevista: O papel da escola no século XXI

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Papel da escola no século 21

Myriam Tricate, coordenadora do Programa de Escolas Associadas (PEA) da Unesco, fala sobre o papel da escola no século XXI e a importância de ensinar habilidades. Leia a entrevista na íntegra:

Há mais de 20 anos, anualmente, acontece o Encontro Nacional das Escolas Associadas da Unesco. O evento reúne educadores de todo o Brasil, da rede pública e privada, para discutir o papel da escola no futuro. Conversamos com Myriam Tricate, coordenadora nacional do Programa de Escolas Associadas da Unesco, sobre como ela vê o papel da escola no século XXI, a inserção de tecnologia na sala de aula e o ensino de competências versus conteúdo. Confira:

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Hoje, a tecnologia avança em uma velocidade exponencial e é difícil prever quais profissões surgirão nas próximas décadas. Nesse contexto, como a escola pode preparar crianças e jovens para um mundo em mudança acelerada?

Myriam: Cada vez mais, as escolas precisam se dar conta de que o papel da escola não é preparar jovens para este ou aquele desafio – nem simplesmente para o trabalho. A escola deve formar cidadãos livres, capazes de exercer suas escolhas individuais, sem nunca perder de vista o coletivo. Deve formar pessoas autônomas, criativas, competentes para compreender criticamente os contextos em que estão inseridas, conscientes de que não há conhecimentos dissociados de valores humanos. Por fim, é fundamental que a educação assimile o princípio da aprendizagem ao longo da vida. A escola é um tempo dessa trajetória do conhecimento, que não acaba nunca. Até o fim de nossa existência, precisamos ser capazes de aprender.

"O papel da escola não é preparar jovens simplesmente para o trabalho. A escola deve formar cidadãos livres, capazes de exercer suas escolhas individuais, sem nunca perder de vista o coletivo"

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Qual a importância do ensino de habilidades e competências na escola do século XXI?

Myriam: É fundamental, no sentido de que o ciclo do desenvolvimento científico é cada vez mais curto. O que aprendemos hoje pode ser caduco amanhã. Por isso, o foco não pode ser no conteúdo, que se renova constantemente, mas nas competências que nos permitem operar o conhecimento, colocá-lo em ação. Uma competência fundamental, por exemplo, é ter um pensamento flexível para a diversidade de contextos em que viveremos. A proposta da UNESCO continua muito atual. Educar, no século XXI, está ligado a formar pessoas capazes de aprender a conhecer, a conviver, a fazer, a ser.

“Educar, no século XXI, está ligado a formar pessoas capazes de aprender a conhecer, a conviver, a fazer, a ser”.

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Ainda dentro desse cenário de transformação constante, vale a pena para a escola inserir ferramentas digitais e tecnologia? Quando a tecnologia é de fato relevante para a aprendizagem?

Myriam: Tecnologia não é um fim em si mesmo. É meio, é processo, é ferramenta. Elas precisam fazer parte da vida das crianças, dos jovens e adultos como um recurso poderoso para a navegação em um mundo complexo, fragmentado, no qual o acesso instantâneo à informação se tornou um pré-requisito.

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Na educação, a tecnologia é relevante sempre que aproximar o aluno do objetivo central: aprender. Isso se dá em diferentes níveis, como no uso do computador como uma ferramenta de acesso e à organização da informação. Mas a tecnologia é central, sobretudo, no processo de reorganização do trabalho da escola, onde a ação de ensinar e aprender extrapola os limites da sala de aula e o tempo do currículo.

Há uma nova lógica instaurada – anunciada na pedagogia do século XX, mas apenas agora se materializando de fato. O aluno é o protagonista do processo. Sem que ele crie, produza, conheça seus desafios, construa seu caminho, não há educação para a autonomia. A tecnologia, que permite a individualização do processo de ensino, colabora muito nesse sentido. Um exemplo é o ensino adaptativo, que dá ao aluno um feedback inédito que lhe permite reorientar seus esforços para os pontos nevrálgicos para a compreensão deste ou daquele conceito.

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Você observa uma mudança de abordagens e metodologias nas escolas? Educação por projetos, desenvolvimento integral do ser humano, educação democrática…? Quais as principais tendências e por quê?

Myriam: Hoje, não temos propriamente uma tendência. Na maior parte das escolas, ainda há, sim, uma profunda angústia, uma desorientação sobre o caminho a seguir. O modelo tradicional resiste porque é um porto seguro. O que há em comum é a certeza de que a escola como está não tem vida longa.

"O modelo tradicional resiste porque é um porto seguro. O que há em comum é a certeza de que a escola como está não tem vida longa".

A inovação é um caminho necessário – se não é pela vontade da escola, com certeza será uma imposição das novas gerações que chegam às salas de aula. Esse novo mundo da educação passa por muitos caminhos, mas sobretudo pela ideia de dotar o conhecimento de sentido. Se os alunos não souberem por que estão aprendendo, se não participarem do processo, pouco há a fazer. Nesse sentido, sim, a educação interdisciplinar, os projetos, o ensino integral podem ser vistos como algumas tendências.

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Por fim, qual o papel da escola no século XXI? E qual o papel de seus agentes: gestor e educador?

Myriam: O papel da escola no século XXI está em cada uma das respostas acima. Como Coordenadora das Escolas Associadas da Unesco, uma organização global que reúne 10 mil escolas no mundo e quase 300 no Brasil, gosto muito da proposta que adotamos. Acho que resume tudo: o papel da escola é preparar os alunos para uma cidadania efetivamente planetária.

Não há mais papéis distintos nesse processo: em uma escola, todos somos educadores. E, em cada profissional, precisa haver a consciência de que também somos gestores desse processo, em diferentes níveis. Exercer a gestão é ter a coragem de fazer escolhas, sem perder o foco no objetivo central e único: promover a aprendizagem.

"O papel da escola é preparar os alunos para uma cidadania efetivamente planetária. Não há mais papéis distintos nesse processo: em uma escola, todos somos educadores".

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