Como inovar no primeiro ano do ensino fundamental? Confira 4 estratégias inovadoras da Escola EDEM nesse artigo de Debora Garcia!
Todos os pais e professores já conhecem a história: a entrada da criança no primeiro ano do ensino fundamental pode representar uma grande virada na rotina para os que vieram da educação infantil, acostumados sobretudo com a ludicidade, com as experiências corporais, com a exploração do espaço, com as trocas afetuosas entre grupos e equipe pedagógica e com a importância, sobretudo do brincar e do criar. É que, tradicionalmente, a entrada no ensino fundamental demarca com mais nitidez o momento da consolidação do letramento, da aquisição de linguagem formal, da compreensão dos códigos da escrita, de uma rotina de aulas e conteúdos que antes eram apresentados singelamente na vivência da creche, sem cobranças por performance ou mensuração da aprendizagem através de notas e avaliações, muito menos comparações de desempenho entre as crianças.
Por esses motivos, muitos pais se angustiam com essa ruptura de um modelo mais orgânico de aprendizagem, que é o que acontece com as crianças até seis anos, passando para uma formalidade mais direta e mensurável da escola considerada “de verdade”. Alguns equívocos parecem estar por trás dessa angústia. O primeiro deles é que a educação infantil que se consolida nos projetos pedagógicos de creches e centros de aprendizagem destinados a essa faixa etária constitui sim uma escola. E das mais importantes. Não é porque a ênfase recai sobre a brincadeira, sobre a formulação de hipóteses e sobre o lúdico que não se está aprendendo de fato. Pelo contrário. É nesse momento onde se solidificam várias das habilidades que cada criança vai desenvolver por toda uma vida escolar. O outro equívoco é acreditar que não é possível fazer da experiência do Ensino Fundamental I algo mais prazeroso, acolhedor e criativo, sem ser fisgado de imediato ao formalismo das experiências predominantemente baseadas na transmissão de conteúdos e na medição de aprendizagem tradicional.
EDEM, uma escola inovadora
Localizada no bairro das Laranjeiras, no Rio de Janeiro, a EDEM vem conseguindo fazer essa delicada transição entre educação infantil e ensino fundamental de uma forma extremamente inspiradora, convidativa, provocadora e instigante. Compartilho com vocês algumas das experiências da Escola Dinâmica de Ensino Moderno, que, com seus quase 50 anos de trajetória educativa, vem trabalhando de forma consistente as várias dimensões do aprender desde a educação infantil até o ensino médio.
Essas experiências que destaco nesse artigo foram realizadas ao longo de 2017 nas turmas do primeiro ano do fundamental I e dão uma ideia do que é possível fazer em termos de inovação. São práticas de fácil implementação que não requerem amplos recursos financeiros nem estrutura física diferenciada. Mas fundamentalmente demandam intencionalidade e dedicação dos professores e da direção. Além de um compromisso com uma educação que coloque o prazer de aprender em primeiro lugar.
Usando criativamente o livro “Crianças como Você”
A escola não adota livros didáticos nessa fase da aprendizagem. Trabalha com amplos materiais de cunho pedagógico produzidos pela instituição, com múltiplas atividades realizadas em sala e outras delas preparadas para serem feitas no contexto da lição de casa, com auxílio dos pais. A sensação não é de aprender por cobrança, prazos e controles, mas sim porque é divertido, significativo e contextualizado. O livro “Crianças como Você”, que retrata com riqueza de ilustrações e informações a vida de crianças de várias partes do mundo, já traz em si um leque de descobertas. Nele, descobrimos que a criança brasileira, de origem indígena, a Celina, gosta de viver perto do rio, adora a floresta e se entristece quando tentam derrubá-la. Já Ji-Koo, da Coréia do Sul, adoraria viajar no espaço para ver se há vida em outros planetas, enquanto Houda, do Marrocos, vê muita guerra na TV e deseja que isso acabe logo para o mundo poder viver em paz. Dessa maneira, as crianças do 1º ano foram expostas à diferentes etnias, modos de fazer e de viver, dando um giro pelo mundo sem sair da escola, ampliando seu olhar para as diferenças enquanto praticavam a escrita, a memória, a habilidade de reconhecer semelhanças e aquilo que nos singulariza no mundo. Como espelhamento, ao final do ano, produziram seu próprio livro onde destacaram de onde vêm, como é sua família, como são seus hábitos de vida, o que gostam de fazer para se divertir e como se enxergam em sua comunidade. Uma atividade que correlaciona diferentes áreas do conhecimento, pode durar praticamente o ano letivo inteiro, requer a compra de um único livro e expande os horizontes até onde não conseguimos ver!
Inovando na abordagem de Lendas Brasileiras
Outra estratégia muito interessante e, ao mesmo tempo, singela, que pode ser adotada por qualquer escola brasileira, foi o uso da série “Lendas Brasileiras” do autor Toni Brandão (ed. Zastras) como tema gerador do último bimestre. A ideia era apresentar às crianças mitos e lendas nacionais que se relacionam diretamente com as diferentes regiões geográficas do país, que mostram traços identitários dos brasileiros e aliam histórias fantásticas com muita imaginação. De quebra, foi um momento importante para se trabalhar o medo, um sentimento que está bastante presente nessa faixa etária, muitas vezes explicitado em pesadelos, angústias em relação ao novo e fortalecimento das estratégias emocionais de cada criança ao lidar com o seu entorno. Além desses pontos, os livros permitiram que as crianças também trabalhassem diferentes gêneros narrativos, redigindo, por exemplo, “classificados” divertidos com anúncios envolvendo o personagem Saci, realizando representações teatrais no contexto das lendas, além de muita experimentação de leitura e escrita. Os livros circularam por todas as crianças ao longo de meses, com a experiência do troca-troca. E deu panos pra manga. Foi assunto de inúmeras conversas e brincadeiras que suscitaram novas e provocadoras aprendizagens.
Construindo maquetes para entender relações de espaço e proporções
Ao trabalhar logo no primeiro bimestre noções de reconhecimento do próprio corpo, do espaço da casa, da escola, do bairro, passando pela noção de localização geográfica e pelo reconhecimento de diferentes escalas e dimensões dos espaços, a proposta foi a de construir maquetes do espaço preferido da escola por cada criança. A foto mostra, por exemplo, o teatro grego, escolha de vários dos alunos da turma. Mas não ficaram de fora o brinquedão, a quadra, a capela, o pátio, a biblioteca… Tudo visto e recriado em uma outra escala, usando diferentes materiais e técnicas, em um projeto que envolveu também as famílias na construção de algo coletivo e significativo. Tenho a impressão que essa maquete ficará nos corações e mentes de todos os participantes.
Livro de Receitas favoritas da turma
Uma outra atividade que contou com a participação dos pais e das crianças e que colaborou bastante na assimilação de vários conteúdos de língua portuguesa e matemática foi a criação de um livro de receitas coletivo. Cada criança tinha que escolher sua receita preferida e, com a ajuda dos responsáveis, compartilhar com a turma como era sua forma de preparo, quais os ingredientes necessários, quantas porções renderia, etc. Dividido entre receitas doces e salgadas, foi possível descobrir um pouco mais sobre os gostos do grupo, agora revelados na forma de uma publicação delicada e bem ilustrada pelas próprias crianças. Da guacamole ao bolo de cenoura, os acepipes foram variados, nutritivos e de fácil preparo. E, durante a feitura do livro coletivo, novamente várias competências foram trabalhadas como o reconhecimento de mais uma das funções da escrita, na forma de receitas, das letras e outros símbolos gráficos, identificação de palavras em contextos diferentes, além de perceber o uso social dos números, das quantidades, trabalhando sequências lógicas e enumeração de passos.
Uma variedade de conteúdos aprendidos de forma contextualizada
Trabalhar a letra cursiva, bastão, o emprego das minúsculas e maiúsculas, a aprendizagem dos números ordinais e cardinais, operações matemáticas como adição e subtração, assim como grandezas, escalas, proporções. Esses conteúdos foram a base pedagógica para que todas as atividades mencionadas anteriormente pudessem tomar corpo e acontecer de fato. Como fazer um classificado para o saci sem ter domínio desse tipo de gênero textual? E como fazer uma maquete sem observar o espaço que seria representado, perceber suas cores, texturas, correlações, espaços de preenchimento e de vazio, escala? E como pensar em um livro de receitas sem enumerar, quantificar, explicar o modo de preparo? Viram como todos os conteúdos podem ser devidamente tratados, mas de forma, integrada, relacional, convidativa e inspiradora?
Meus sinceros votos para que vocês, leitores da InfoGeekie, consigam encontrar em seus espaços de trabalho e em sua prática docente, oportunidades múltiplas para reinventar a educação, para inovar, para surpreender. E para continuar contribuindo para que as nossas crianças e jovens tenham condições e desejo de aprender de forma significativa e prazerosa. Sempre. Feliz 2018!
PS: Esse artigo é dedicado à professora Renata Paula. Como diria Maiakovsky, nela a anatomia ficou louca: é toda coração! Sim, porque educação é também afeto. E isso faz toda a diferença!
* Débora Garcia é pedagoga, mestre em Educação pela UFF, Fulbright Scholar pela Georgia State University, GA, e especialista em Gestão do Conhecimento pela Coppe-UFRJ. É gerente de conteúdo do Canal Futura e uma das autoras do livro “Destino: Educação – Escolas Inovadoras”, publicado pela Fundação Santillana/Ed. Moderna. Em 2017, em conjunto com Daniela Kopsch e Daniela Belmiro, idealizou e criou o blog “3Devi”, um espaço para contos, ensaios e reflexões da mulher contemporânea.
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