Planejamento reverso: o caso da professora Danielle Lima

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Quadro Backward Design: os três passos para o planejamento a partir do objetivo, passando pelas evidências até as experiências

Que professor ou professora nunca se questionou se os/as estudantes realmente compreenderam o conteúdo? Essa dúvida é muito comum quando o planejamento das aulas é feito de forma tradicional. Conheça o caso da professora Danielle Lima e como ela contornou essa situação com o Backward Design

O planejamento é uma etapa fundamental na prática docente, reconhecida como valorosa para docentes e gestores. Por meio do planejamento o professor torna sua  ação intencional. Com o advento da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e sua organização por meio de competências e habilidades, o desafio de realizar um planejamento efetivo se torna ainda maior. 

A forma de planejar que se estabeleceu ao longo do tempo gira em torno de dois processos: seleção de atividades e materiais a partir de um conteúdo (planejamento com foco em atividades) ou a “cobertura” de um conteúdo a partir de um material de base (o livro didático). Organizamos essa ações em um determinado número de aulas ou períodos. Por fim, elaboramos avaliações que nos permitam determinar “o quanto” do conteúdo foi “aprendido” pelo aluno.  

No fundo, nossa perspectiva é que, ao final desse período, os alunos tenham alcançado os objetivos de aprendizagem propostos (ou as competências e habilidades definidas).  Mas, fica a pergunta:

Será que os/as estudantes verdadeiramente compreenderam aquele tema, tópico ou assunto das aulas?

Essa pergunta costuma pairar na mente de muitos professores, pois estão preocupados com a efetividade de sua prática docente. Danielle Lima é professora de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental (séries finais) e relata que essa pergunta sempre a “torturou”, pois muitas vezes, parecia que os estudantes simplesmente “deletavam” o conteúdo explorado ao final do bimestre/trimestre, como se “zerassem o placar” para começar uma nova etapa, sem se darem conta de que a aprendizagem é um processo contínuo e interdependente. Essa sensação trazia como pano de fundo a ideia de uma aprendizagem superficial, restringindo-se a memorização e aplicação de alguns conceitos, sem a devida contextualização. 

Há mais de três anos, Danielle vem se dedicando a aprofundar-se em novas abordagens e práticas pedagógicas, que pressupõem novas formas de planejar e avaliar. Por meio de leituras, formações imersivas e práticas e muita experimentação, Danielle tem ressignificado seu trabalho docente. Nesses estudos, há pouco mais de um ano, a professora conheceu o conceito de “planejamento para a compreensão” e vem exercitando esse novo olhar para desenvolver suas experiências de aprendizagem. Vamos conhecer um pouco mais sobre essa proposta?

O Backward Design ou “Começar pelo fim”

O planejamento reverso, em inglês Backward Design (Wiggins & McTighe, 2005) tem como fundamentação a ideia de “começar pelo fim”, ou seja, o que queremos que os alunos compreendam ao final da experiência de aprendizagem para, a partir daí, realizar todo o planejamento da ação pedagógica. 

A compreensão que queremos que os estudantes tenham é mais do que adquirir uma habilidade ou saber alguma coisa. Por trás da compreensão, está o significado mais profundo e duradouro de algo, um “porque” (razão) que me permite, inclusive, definir o momento de usar ou não aquele conhecimento. Por trás do conceito de compreensão, há a necessidade de transferência daquilo que sei para outros contextos. 

A compreensão se traduz em “grandes ideias”, que é o termo utilizado pelos autores para descrever “conceitos, temas ou questões que dão significado e conecta fatos específicos e habilidades.” 

Por que o planejamento tradicional não é suficiente?

No livro, os autores dão um exemplo de planejamento na forma tradicional que pode nos ajudar a entender melhor o que devemos evitar. Um professor decide trabalhar o preconceito racial como tema. Para isso, escolhe um livro paradidático e estabelece uma estratégia de compartilhamento dessa leitura, como por exemplo, uma roda de conversa, um seminário etc. Ao fim, o professor levanta algumas perguntas para avaliar a compreensão do livro.

Para os autores, esse tipo de planejamento não leva em conta o que de fato queremos com essa atividade em termos de transferência de aprendizado para um contexto real, ou seja, o que queremos que os alunos façam depois de lerem o livro? Da mesma forma, quais seriam os equívocos de compreensão que os estudantes podem vir a ter e que devemos evitar?

A defesa dos autores é que não devemos começar escolhendo o livro, a atividade ou mesmo um tema. Precisamos definir quais compreensão duradouras queremos desenvolver, como vamos obter as evidências de que a compreensão de fato se concretizou e, por fim, que experiências de ensino-aprendizagem possibilitarão que os alunos alcancem os resultados desejados?

Quadro Backward Design: os três passos para o planejamento a partir do objetivo, passando pelas evidências até as experiências
Estágios do planejamento reverso (Wiggins & McTighe, 2019)

Saiba mais: “Comece pelo fim: os 3 passos da metodologia para planejamento de aulas mais significativas”, por Marcela Lorenzoni

As aulas de variação e preconceito linguísticos da professora Danielle Lima

Danielle Lima e eu elaboramos juntas uma sequência de aula voltada à área de Língua Portuguesa para 6º ano do Ensino Fundamental, que foi aplicada por ela. Nessas aulas, buscamos consolidar a compreensão sobre variação linguística e preconceito linguístico.

Muitas vezes a exploração desse assunto objetiva apenas contrapor as variantes linguísticas à norma-padrão, explicando, de forma sucinta, porque não se pode menosprezar as diferentes formas de expressão oral e escrita. Isso normalmente é feito de forma pontual e isolada, por meio da análise de tirinhas e vídeos curtos, mas a BNCC traz as habilidades relacionadas à variação linguística como necessárias a todos os campos de atuação, do 6º ao 9º ano. 

Esse conteúdo também se relaciona com a compreensão das situações comunicativas, contexto de produção, suporte e circulação. Portanto, seu planejamento pode permear todo o ano letivo. Nesse caso, o ideal seria elaborar um plano de currículo, que pode partir dos seguintes critérios: que compreensões são esperadas? Que perguntas precisam ser respondidas? Quais as orientações curriculares estão envolvidas?

A seguir, apresentamos algumas ideias:

COMPREENSÕES
A variedade linguística é fruto de transformação de das línguas em diferentes contextos sócio-históricos e ela continua se transformando.

A língua pode variar de acordo com a idade, gênero, estrato social, região (urbana, rural) ou situação de comunicação (registro formal e informal), mas a variação não produz uma  língua “errada”. 

O preconceito linguístico é fruto do prestígio dado ao falar de alguns grupos pertencentes a um lugar ou classe social específica

Muitas vezes, o que chamamos de “certo” e “errado” deve ser entendido como mais ou menos adequado à situação de comunicação.

A língua falada e a língua escrita possuem regras distintas.

Na língua escrita, temos uma norma-padrão que é ensinada na escola e está presente em dicionários e gramáticas. Ela não tem como objetivo eliminar as variantes faladas ou escritas.
PERGUNTAS ESSENCIAIS
Por que existem formas diferentes de se falar a língua portuguesa?

Existe uma língua portuguesa “certa”?

Podemos corrigir quem “fala errado”? 

Por que têm coisas que são aceitas quando eu falo, mas não quando eu escrevo?

Posso falar de qualquer jeito em qualquer situação?

O jovem de hoje tem um repertório linguístico mais forte ou mais fraco do que os jovens do passado? 

Por que muitas vezes uma pessoa deixa de ser ouvida ou passa a ser desrespeitada quando escreve alguma coisa “errada”?

Por que não ouvimos todos os diferentes “sotaques” na televisão com a mesma frequência?
HABILIDADE ENVOLVIDA
EF69LP55 – Reconhecer as variedades da língua falada, o conceito de norma-padrão e o de preconceito linguístico.

O passo seguinte, foi pensar em quais evidências podem mostrar se os alunos realmente compreenderam a essência do tema. Planejamos as seguintes ações, que fazem parte de uma campanha maior de combate ao preconceito linguístico.

  • Websérie criada pela turma com o tema da diversidade linguística entrevistando uma pessoa, visando ressaltar as diferentes variantes faladas no Brasil (sejam elas regionais, geracionais etc.);
  • Um infográfico que apresente os conceitos de variante e preconceito linguístico de forma atraente e de fácil entendimento aos estudantes do sétimo ano. O material será entregue aos alunos das demais turmas, dentro da campanha de conscientização sobre o tema, seguido de um debate em que os alunos vão mediar em parceria com o professor.

As atividades elaboradas foram diversas, envolvendo webconferência com estudantes de outras regiões, bem como de outros países para reconhecimento e apreciação das variantes regionais, estudo de algumas mudanças históricas na língua portuguesa que hoje fazem parte da norma padrão, leitura e debate sobre alguns trechos da novela sociolinguística “A Língua de Eulália”, de Marcos Bagno (Editora Contexto, 1997) entre outras. 

Durante todo o tempo houve o compartilhamento dos objetivos com os estudantes, para que eles soubessem onde queríamos chegar; devolutivas processuais, para que pudessem revisar e fazer os ajustes necessários; orientação e incentivo durante todas as atividades.

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Objetivos de aprendizagem claros para as atividades como resultado do planejamento invertido

Os resultados obtidos foram o compromisso e entusiasmo de toda a turma, a real compreensão de que devemos respeitar e apreciar as variantes da língua e a reflexão sobre as situações comunicativas e sua relação com o ambiente e o público-alvo. Nessa faixa etária é bem comum a postura de corrigir o outro, muitas vezes se baseando em critérios de escrita, não de fala. O debate sobre o preconceito linguístico provocou mudanças de atitude nos estudantes, que perceberam que aprender é mais do que saber falar sobre alguma coisa, mas se posicionar no mundo a respeito. 

Para a Danielle, o maior ganho foi no planejamento de projetos, que muitas vezes eram temáticos, mas não traziam objetivos de aprendizagem claros para as atividades. Dani alerta que muitas vezes, em busca de engajamento, perdemos o foco. Os projetos, embora divertidos e eficientes para romper com a rotina das aulas, podem não trazer aprendizagem significativa. 

Uma forma de começar a refletir sobre o planejamento para a compreensão é refletir sobre objetivos. Você pode perguntar aos seus alunos, durante uma tarefa: o que você está fazendo? Por que lhe foi pedido a fazer isso? Como isso se encaixa com o que você fez anteriormente? Como você mostraria que aprendeu isso? As respostas podem lhe indicar alguns caminhos para melhorar seus planejamentos.

Vamos juntos?

Referências

Biggs, J (2003): Aligning Teaching and Assessment to Curriculum Objectives, (Imaginative Curriculum Project, LTSN Generic Centre). Disponível em inglês neste link. Acesso em fevereiro/ 2020

WIGGINS, Grant, & MCTIGHE, Jay. Planejamento para a compreensão: alinhando currículo, avaliação e ensino por meio do planejamento reverso. 2.ed (ampliada). Porto Alegre: Penso, 2019 

Julci Rocha é Mestre em Educação: Currículo (PUC/SP) pós-graduada em gestão educacional, design educacional e Educação Inovadora: didáticas, tecnologias, design e autoria Licenciada em Letras pela USP. Atua na formação inicial e continuada na educação desde 2008, , apoiando professores e gestores em seu desenvolvimento pessoal e profissional. Tem experiência em design, coordenação e desenvolvimento de iniciativas inovadoras consultoria e gestão de programas inovadores em redes públicas e privadas, envolvendo integração das tecnologias digitais nas práticas pedagógicas. aprendizagem criativa e metodologias ativas.  Atuou em instituições importantes como Instituto Paulo Freire, Fundação Lemann e Microsoft. Hoje é Fundadora e Diretora da Redesenho Educacional, assessoria especializada em educação inovadora. Autora de material didático para o Grupo Santillana, SESI e Nave e Vela. Representou o Brasil no E2, Congresso Mundial de Educação da Microsoft em Singapura (2018) e Paris  (2019). Também é professora convidada do Instituto Singularidades e SENAC.

Danielle Lima é licenciada em Letras (UECE),  pós-graduada em Gestão Educacional (UFSM) e Educação e Tecnologias UFSCar). Professora de Língua Portuguesa em uma privada em São Paulo.  Autora de planos de aula da Nova Escola e de materiais didáticos- pedagógicos. Professora agraciada com o prêmio Destaque Educação em 2019, em parceria com a professora de história Silvana Martinho. Representou o Brasil no E2 – Congresso Mundial de Educação da Microsoft em Paris (2019) e representará em Sidney (2020). Coordenadora de Projetos da Redesenho Educacional.

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