Leonardo Freitas, colunista do InfoGeekie, sempre fala sobre os desafios da sala de aula. Dessa vez, de forma corajosa, compartilha uma reflexão bastante pessoal e profunda sobre o papel que ela ocupa na vida dos professores quando a vida impõe desafios ainda maiores.
“É paizinho…vamos fazer exame, mas é quase certa a leucemia”. E, assim, com essa frase direta e fria, meu mundo ruiu. Até aquela quinta-feira, eu achava que a vida era de outro jeito, que eu sempre teria forças para enfrentar o que surgisse, dentro e fora de sala. Antes das manchas negras que tomaram (e ainda tomam) conta do corpo do Pedro, eu acreditava que bastava acordar cedo, trabalhar e enfrentar as dificuldades do trabalho, pagar contas e ir levando a vida. Achava que as “deprês” da vida eram reservadas às pessoas mais fracas, mais dispostas a isso; que encarar a vida era o que bastava. Bem, estava enganado…
Dessa frase decorreu muita coisa, tanto pessoal quanto profissional. E como decorreu! O primeiro passo foi abandonar o ensino superior, pois, como havia grande risco de dar errado, eu queria ter o máximo de tempo possível com ele. E daí vieram outras coisas: aquele cara criativo, cheio de planos, de ideias novas deu lugar a alguém desanimado, caído e sem a menor vontade de criar nada – apenas de viver momentos com um filho portador de leucemia, que tinha prazo de validade. Óbvio que tudo começou a dar errado… E sempre que me via desse jeito, tinha de acordar de manhã, entrar em sala, pôr um sorriso na cara e tentar dar aula o dia todo.
É assustador o quanto uma coisa assim é difícil de fazer! Hoje eu penso: como tantas pessoas precisam colocar um “bom humor” matinal e ir às suas aulas? Quantos, entre nós professores, estão à beira de um ataque ou de um surto? Quantos vivem no “automático”, esperando apenas uma aposentadoria ou uma demissão? E ainda vou além: quantos alunos também não estão nessa vida dessa forma? Recentemente uma professora, senhora já, foi brutalmente espancada por pedir a um aluno que sentasse direito na cadeira. E ainda foi criticada nas redes sociais… E pior que em breve isso será esquecido, ou dará espaço a outras tragédias nos noticiários. Como lidar com isso? Como ficaria a cabeça de uma pessoa dessas? Será que estaria cheia de desânimo e dúvidas como a minha está?
E assim foi por muito tempo… E um sentimento sempre me acompanhava: “como melhorar?” e “como conseguir dar aula vivendo assim?”. Ora, que tipo de trabalho é esse que não nos permite sofrer como pessoas normais? O “pior” foi descobrir que, de uma forma ou de outra, a sala de aula me ajudou muito. Enquanto estava com os alunos, o tempo passava e aqueles problemas específicos sumiam. E, mesmo à custa de muita insistência, recusei-me a cair nos medicamentos. Acreditava que isso seria um abismo difícil de sair. E assim fui vencendo os dias, contando com o trabalho que os adolescentes dão, mas também com sua alegria, seu entusiasmo e, até em algumas situações, com suas palavras amigas!
E eis que chegou o grande dia do mielograma! Engraçado como palavras antes distantes agora fariam parte da minha rotina. Pedro dopado, medula perfurada, líquido extraído e um pai desesperado… E o grande diagnóstico da púrpura sobreveio ao da leucemia. “Púrpura”? E lá foram mais dias, meses, atrás de entender o que se passava em meio à manchas assustadoras, sangramentos frequentes, dores, exames, aulas, provas, atrasos… Enfim, aprendendo a viver com compromissos, 3 crianças, trezentos e poucos alunos e uma doença crônica. E depois vim descobrir, nos grupos de apoio, crianças incrivelmente pequenas com doenças extremamente agressivas e perigosas.
Por aulas e aulas, quando eu chegava em sala, estavam todos ali, conversando, agitados, mas também preocupados, querendo notícias. Palavras amigas de pais e alunos, dos quais eu jamais esperava tanta força. E no corre-corre de um ano letivo, fomos aos poucos voltando à rotina normal. Uma rotina que eu havia estabelecido, cheia de jogos, aulas animadas, conversas, vídeos, músicas; uma rotina divertida que havia dado lugar, de certa forma, à tristeza e repetição.
Hoje não posso dizer que estamos curados (nem o Pedro nem eu), mas estamos no processo. Ainda não sei o que acontece com nós dois, mas ambos estamos trilhando nosso caminho e nos ajustando a novas realidades. E quantos de nós, que tanto almejam um, dois, três empregos, reconhecimento, satisfação, produção criativa, não temos de dar aquele ctrl+alt+del para recomeçar? Fui atingido no auge da minha “carreira” por um inimigo invisível, auto imune e covarde, que fez tudo virar de ponta cabeça.
E quantos que irão ler este texto não se encontram numa situação de angústia, desespero, tristeza, seja por problemas, seja por decepção com o magistério, seja pelo motivo que for.
Hoje, não vim falar com meus saudosos, ilustres e amados leitores e editores sobre tecnologia, educação, metodologias, experiências. Vim falar sobre esperança, fé e na possibilidade de dias melhores, dias que nos façam sorrir. Caso alguém esteja nesse limiar, tente trocar o calmante por conversa, o remédio por fé, a depressão pela melhora. Que seja tímida, mas que seja honesta. Talvez você consiga ver, assim como eu estou vendo, que a vida é mais do que problemas, noites mal dormidas ou teses de mestrado mal defendidas. A vida está aí pra ser vivida e vivenciada, louvada e defendida… Até porque ela passa (e acaba) rápido! E de todas as ajudas que eu poderia prever, nenhuma me surpreendeu mais do que aquela que veio de onde muitos não a encontram: na danada da “sala de aula”…
Até a próxima!
* Leonardo Freitas é graduado em Letras, com especialização em Literatura Brasileira. Leciona há 16 anos e desde pequeno queria ser professor. Já passou por todos os níveis, desde o Ensino Fundamental II ao Superior. Atualmente, trabalha com onze turmas de 8º e 9º ano e com turmas dos cursos superiores de Pedagogia e Enfermagem em instituições particulares de Brasília.
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